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A filosofia é um ótimo ponto de partida na busca da resposta à pergunta sobre o que é a felicidade. Segundo a doutrina do eudemonismo, defendida por alguns filósofos da antiga Grécia, a felicidade (eudaimonia) está ligada à ética e ao comportamento virtuoso. Dentre os filósofos do passado que trataram do tema da felicidade – na terra, naturalmente, e não na putativa vida depois da morte –, destacam-se Aristóteles (384-322 a.C.), Epicuro (341 -270 a.C.), Blaise Pascal (1623-62), John Locke (1632-1704), Emmanuel Kant (1724-1804) e John Stuart Mill (1806-73). Dentre os diversos filósofos contemporâneos que abordaram o tema da felicidade está Ayn Rand (1905-82), uma filósofa russa que se mudou para os Estados Unidos em 1926.

 

Os Antigos

Sócrates (469-399) deixou apenas uma nesga sobre a felicidade (eudaimonia), nos Diálogos de Platão (428-348 AEC), concluindo que as pessoas felizes são felizes pela posse da temperança e do senso de justiça. Platão, por sua vez, definiu a felicidade como sendo a harmonia entre a alma e o corpo, mas não elaborou uma filosofia da felicidade. Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) foi o primeiro a tratar a fundo do tema da felicidade. No seu livro Ética a Nicômaco Aristóteles afirma que a felicidade é a vida plena, onde a alma (psyche) age de acordo com a virtude (arete). Esse tipo de felicidade é o bem supremo (summum bonum) que dá o objetivo e mede o valor de todas as atividades humanas, e somente está disponível aos indivíduos realmente livres. Nesse mesmo tratado Aristóteles questiona as disposições (hexeis) da pessoa para fazer algo ou desejar uma coisa e afirma que o homem virtuoso não almeja diretamente a felicidade mas sim a realização. Entretanto, Aristóteles reconhece outro tipo menor de felicidade, que é o contentamento decorrente do suprimento das necessidades práticas da vida.

 

Epicuro, filósofo do grupo dos atomistas e criador de um sistema de filosofia separado das escolas Helênicas como as de Aristóteles e a dos Estoicos, não acreditava na sobrevivência da alma depois da morte. Ele identificou que o medo da morte e da punição eterna causava uma enorme ansiedade no ser humano, e que era também uma fonte de desejos irracionais. Epicuro via a felicidade como sendo a vida livre da ansiedade mental e aberta aos prazeres ‘catastemáticos’ ou estáticos, aqueles geradores de tranquilidade (ataraxia) e  contentamento (khara). Epicuro separou a verdadeira felicidade (eudaimonia) daquilo que ele chamou de ‘hedonismo’, o hábito de viver pelo prazer físico (hedone) obtidos da comida, bebida e do sexo. Epicuro escreveu que a verdadeira felicidade vem da amizade ou amor (philia) e da minimização das necessidades. Entretanto Epicuro foi duramente criticado pelo fato de pregar a fuga de responsabilidades nos conselhos que ele dá de não casar, não ter filhos, não se meter em política, etc.

 

Os Modernos até o Século Dezenove

O filósofo inglês John Locke é o autor da expressão ‘busca da felicidade’ que Thomas Jefferson empregou na redação da Declaração de Independência dos Estados Unidos. Locke afirmou que a felicidade é o prazer máximo e o motivador do desejo, mas advertiu que muitas vezes as pessoas fazem escolhas que as tornam infelizes. Para Locke, as regras e as medidas das ações humanas que podem levar à felicidade são objeto da ética. A obra de Locke foi continuada por diversos filósofos tanto da Grã-Bretanha quanto do continente.

 

Immanuel Kant tinha conhecimento da expressão ‘busca da felicidade’ de Locke, pois afirmou que alguns filósofos consideram a ‘busca da felicidade’ como sendo a fonte da legislação moral da sensibilidade – em contrapartida com a ideia de que esta vem da vontade de Deus. Kant estendeu a ideia afirmando que não devemos desejar a felicidade, mas sim procurar merecer a felicidade. Kant mostrou que, embora existisse uma vontade racional (rational will) que correspondia a uma lei natural de sensibilidade, tal lei era limitada pela sua imprecisão, pois quando analisada a fundo evidenciava formas disfarçadas do egoísmo. Entretanto, Kant admite que apesar de imprecisa, a lei natural de sensibilidade é evidenciada pela própria sobrevivência da humanidade.

 

Trocando em miúdos, Kant fez uma distinção entre a dignidade das pessoas e as coisas que são utilitárias para as pessoas. As coisas são meios cujo valor é relativo à utilidade que oferecem e que, portanto, podem ser substituídos por outras coisas que fazem o mesmo efeito; por esse motivo as coisas têm um ‘preço’ de mercado. A dignidade das pessoas, por outro lado, requer o respeito – coisa que não tem preço e nem equivalente. Afirmou Kant: ‘Faça a própria perfeição e a felicidade dos outros o objetivo de suas ações’ (Make thine own perfection and the hapiness of others the end of thy actions). Kant também enfatizou a necessidade da liberdade para que o indivíduo se torne um ser de razão, capaz de cumprir a lei moral pela disposição da razão e não apenas pelo impulso dos sentidos.

 

John Stuart Mill concorda com Kant que cada pessoa tem a sua própria visão sobre o que é a felicidade, mas a sua definição de felicidade é diferente da de Kant e baseada na doutrina do Utilitarismo segundo a qual a ação moralmente correta é aquela que produz mais bem. No ponto de vista utilitário é preciso maximizar o bem, que é identificado como sendo o prazer. Um dos seus princípios é que a felicidade de todos é igual: o meu ‘bem’ não é maior nem menor que o ‘bem’ dos outros. O igualitarismo contido na noção do bem do utilitarismo tornou essa doutrina altamente atraente durante o século dezenove. Durante o esse século o único crítico do utilitarismo foi Nietzsche, que questionou o desencontro dos seus motivos com o seu objetivo explícito de obter a felicidade maior para o maior número de pessoas possível, notando a imprecisão da definição do ‘bem’ defendido. Os grandes furos da doutrina do utilitarismo começaram a aparecer no século vinte: a eugenia, as limpezas étnicas e a ditadura do proletariado. Alguns filósofos da segunda metade do século vinte foram buscar em Kant o maior argumento contra o utilitarismo: seja lá por que motivo, ninguém tem o direito de tomar decisões que afetem a existência de outras pessoas.

 

As ideias acerca da honra foram retomadas pelo filósofo alemão Georg Hegel, que afirmou que o homem enfrenta sempre uma ‘luta pelo reconhecimento’ (fight for recognition)1. Hegel também retomou duas outras ideias de outros filósofos: luta e fuga e mestres e escravos. Ele reconhece a existência de duas classes de indivíduos: os que têm coragem e optam pela luta e os que não têm e optam pela fuga. Apenas os indivíduos de coragem possuem uma autoconsciência universal que os tornam ‘mestres’ enquanto que os demais permanecem ‘escravos’ (indivíduos subservientes). Apenas os ‘mestres’ conseguem ser completamente livres; apenas o homem livre possui livre arbítrio; apenas o homem de livre arbítrio consegue ser moral; apenas o homem moral consegue alcançar a felicidade que vem do respeito, da dignidade e da honra2.

 

O Século Vinte: A Visão de Ayn Rand

Ayn Rand, uma filósofa e escritora russa naturalizada americana, abordou o tema da felicidade com uma enorme clareza e praticidade no seu livro A Virtude do Egoísmo, (The Virtue of Selfishness ), publicado originalmente em 1961. Nesse livro Rand deixa clara a distinção entre a busca da manutenção da vida e a busca da felicidade. Para ela, não se pode negar que os direitos sociais sejam necessários para a manutenção da vida de uma forma digna mas afirmar que os direitos sociais são suficientes para a felicidade é uma extrapolação injustificada.

 

Ao definir a felicidade, Rand levou em conta o fato de que cada indivíduo tem um conceito próprio sobre a mesma. Para ela “a felicidade é o estado de consciência que procede do alcance dos valores de cada indivíduo. Se um indivíduo valoriza o trabalho produtivo, a sua felicidade é a medida do seu sucesso no serviço de sua vida. Mas se um indivíduo valoriza a destruição, como faz o sádico – ou a autoflagelação, como o masoquista – ou a vida depois da morte, como o místico – ou ‘curtições’ irrefletidas, como o motorista de um carro envenenado – a sua alegada felicidade é a medida do seu sucesso no serviço de sua própria destruição”. Para Hand, o estado emocional dos irracionalistas que valorizam a destruição não pode ser designado como felicidade ou mesmo como prazer: é meramente um momento de alívio de seu estado de terror crônico.

 

Rand afirma que devido à natureza metafísica do homem e da existência, o homem tem que manter a sua vida pelo seu próprio esforço; os valores que o homem precisa – tais como riqueza e conhecimento – não lhe são dados automaticamente, como um presente da natureza, mas precisam ser descobertos e atingidos pelo seu próprio raciocínio e trabalho. Embora o propósito moral da vida do homem seja atingir a própria felicidade, a felicidade depende da resolução de questões metafísicas que são bem diferentes das questões mundanas necessárias para a manutenção da vida.

 

Após concluir que a verdadeira felicidade não pode ser obtida através da busca de caprichos irracionais, Rand lembra que na sociedade aberta cada indivíduo é livre para escolher a sua maneira de viver, o que inclui tentar buscar a felicidade via alternativas irracionais. Entretanto, a verdadeira felicidade só é possível ao homem racional, ou seja, aquele que tem valores racionais, aspira apenas objetivos racionais e só consegue encontrar alegria em ações racionais.

                                                                                 

Jo Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria: www.portvitoria.com -  revista eletrônica dedicada às comunidades falantes de português e espanhol de todo o mundo.

Notas

1.É interessante notar que Hegel escreveu isso décadas antes do aparecimento da teoria evolutiva de Charles Darwin, que inspirou a frase ‘luta pela sobrevivência’ criada por Herbert Spencer mas obviamente uma paráfrase de Hegel.

 

2. Os duelos pela defesa da honra eram ocorrências comuns nos séculos dezoito e dezenove, e evidenciam ainda a ‘luta pelo reconhecimento’ que Hegel descreveu.

 

 

Referências Consultadas

Aristotle (1986). Nocomachean Ethics (Ethica Nicomachea), translated by W.D.Rodd, p. 339-436. In: Maynard Hutchins, Robert, Editor in Chief, Great Books of the Western World 9, Aristotle II. William Benton, Publisher, Chicago.

Durant, Will (1953). The Story of Philosophy. The Lives and Opinions of the Great Philosophers. Simon and Schuster, New York.

Fukuyama, F. (1992).The End of History and the Last Man. Avon Books, New York.

Havel, V. (1990). Disturbing the Peace, tanslated by Paul Wilson. Faber and Faber, London.

Hegel, G. W. F. (1971). Philosophy of Mind. In: Encyclopaedia of Philosophical Sciences, part 3, translated by William Wallace, Oxford. Kindle version, Guttenberg Project.

Kant, Immanuel (2005). Critique of Judgement. Translator: J H Bernard. Dover Publications Inc, Mineola, New York.

Pinker, S. (2002). The Blank Slate. Penguin Books, London

Pascal, Blaise (1986). Pensées, translated by W. F. Trotter. In: Maynard Hutchins, Robert, Editor in Chief, Great Books of the Western World 7. William Benton, Publisher, Chicago.

Plato (1986). The Dialogues of Plato, translated by Benjamin Jowett. In: Maynard Hutchins, Robert, Editor in Chief, Great Books of the Western World 7, Plato. William Benton, Publisher, Chicago.

Plato (1986). The Seventh Letter, translated by J. Harward. In: Maynard Hutchins, Robert, Editor in Chief, Great Books of the Western World 7.  William Benton, Publisher, Chicago.

Rand, A. (1961). The Virtue of Selfishness. A New concept of Egoism. Signet.

 

Agradecimento: Carlos Pires, revisor.

 

 

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