ARTURO REZENDE E OS ÓCULOS
Ronie Von Martins




Ao acordar precisava de um nome. Uma designação. Um rótulo. Precisava ser identificado. Identidade. Buscou alucinado a carteira no bolso da calça atirada despojadamente aos pés da cama. A cama era assim. Ela deturpava o ambiente em que se encontrava. Oferecia ao corpo consolo e abandono, prazer e descanso. Era então que o corpo, satisfeito com a promessa se despojava das armaduras sociais. Dos panos rituais que definiam condições e classes. Nu o corpo afundava na cama... para acordar sobressaltado, apavorado. Pois já não era mais o tempo da cama. Era o tempo dos calçados. Dos passos rápidos e angustiantes. Era o tempo do movimento intenso...ou nem tanto. Mas era o tempo do movimento. Dos discursos que copulavam, digladiavam. Dos discursos que morriam.
Arturo Rezende. Tinha se reencontrado. Agora voltara definitivamente do mundo insinuante e sedutor da cama. Sereia, ninfa do mar.
Ao chuveiro pensava na vida. “Como se um funcionário público tivesse muito o que pensar”. Mas pensava, por incrível que pareça além do funcionário público, além do chuveiro e além de sua condição.

Pensava sim. E muito. Só que os pensamentos de Arturo escorriam todos pelo ralo do banheiro. E depois que secava o corpo e vestia sua roupa de trabalho, e colocava os óculos, e apanhava a pasta, e tomava o café, sempre o mesmo café – meia xícara e duas bolachas salgadas - já não havia pensamento que resistisse ao árido corpo que ali se constituía.

Quem de perto pudesse observar melhor, perceberia que até aquele pequeno ar prazeroso que o lábio inferior de Arturo sempre fazia ao sair do banho, breve sensação de alívio e frescura; como se fosse puxado por mãos contrafeita ao prazer dos outros, esticava-se em uma boca hermeticamente fechada e árida. Soldados os lábios. As sobrancelhas enrugavam-se levemente e algumas rugas ainda não percebidas encrespavam a testa de Arturo. Arturo outro homem não o mesmo antes.

Ao chegar ao trabalho largaria seu casaco no encosto de sua cadeira de rodinhas e se poria a analisar avidamente os números. Revisaria quantas vezes fosse necessário qualquer coisa que não precisasse de revisão. Faria apontamentos, relatórios que ninguém leria. Mas faria aquilo tudo com prazer. Pois poucos tinha.

Perigosamente solteiro aos quarenta e dois anos, já havia acumulado um número de manias incapaz de permitir uma vida tranqüila com qualquer mulher normal. Por isso namorava Malva. Malva não era normal. Dona do armazém na rua onde Arturo morava, não era muito bem vista pela vizinhança. Nada honesta, diziam que inclusive superfaturada a mercadoria. Errava sempre ao seu favor nos cálculos dos ranchos e ainda por cima ostentava um decote tão imenso que quase obrigava os fregueses a – constrangidos – olharem para os lados ou para cima, para desviarem os olhos daquelas duas enormes obscenidades que se debruçavam sobre a caixa registradora. Foi isso que chamou a atenção de Arturo.

Com um pacote de bolachas salgadas na mão, dirigia-se ao caixa quando deparou com aquilo. Metáfora da luxuria. Sexo e dinheiro. Corrupção e economia.
Ele não precisou pagar as bolachas. Ganhou a mulher sobre a caixa registradora. Mas só a mulher. A caixa permanecia distante. Ele continuava pagando tudo. Malva não ajudava em nada. E ainda cobrava. Cobrava mais amor, mais carinho, mais dinheiro para passearem, para viajarem. Queria presentes. Queria um carro novo. Arturo começava a achar que não fizera bom negócio.

Mas a vida é ridiculamente irônica, estranha e essas coisas todas que dizemos quando não entendemos nada. Arturo cansou. Acordou um dia e decidiu que estava cansado. Quase conseguiu, mas quando colocou os óculos tudo voltou ao normal. Pensava até em dizer à Malva que não queria mais os seus seios enormes e sua fome destruidora. Mas desistiu. Depois dos óculos seus lábios estavam selados para diálogos mundanos. Mas precisava das bolachas. De manhã. Quinze para as oito. Entrou no armazém da Malva. Silêncio incomum apanhou o pacote de bolacha e dirigiu-se ao caixa. Estancou. O assaltante como na tela do cinema, projetado nas lentes de seus óculos. Menor de idade. Arma muito poderosa, magro e fraco. Com a arma poderoso e alucinado. “O dinheiro, o dinheiro!”

Os olhos de Malva não denotavam medo, mas um ódio avassalador se pudesse trituraria o assaltante. Os seios fartos arfavam, o coração acelerado. “Calma ai meu senhor...” O meus senhor se endereçava a Arturo que em pé suava. Não consegui falar nada, dizer ou fazer nada. Os olhos de Malva ordenavam que agisse que saltasse sobre o meliante, que o agarrasse, que salvasse a caixa registradora. Impositivo era o olhar. O corpo de Arturo não mexia. Posição tão incômoda para ele e para o assaltante. “Vai pra lá cara, encosta no balcão!” E Arturo não conseguia. Petrificado juntamente com suas bolachas, permanecia em pé, estátua pública, a alguns passos do assaltante. “Já falei p...” no exato momento em que o delinqüente virava-se para agredir verbalmente Arturo, de sobre o balcão Malva saltou. Seios balouçantes, dentes trincados em fúria doentia, braços abertos, unhas escancaradas. Um estampido surdo. Seco. E mulher e assaltante estatelaram-se no chão. Inertes. Ela com um enorme buraco de bala no pescoço. Muito sangue pelo chão. O assaltante. Magro e fraco. Morrera ao bater com a nunca no chão. Mortos. Os dois.

Arturo permaneceu quieto por alguns segundos. Tirou a carteira do bolso, arrancou a carteira de identidade e jogou-as sobre os cadáveres, tirou o casaco e largou no chão. Ao sair do armazém estava apenas de cuecas e de óculos. Não olhou para trás. E antes de deixar o lugar e adentrar pelo meio de centenas de pessoas que se aglomeravam para ver a cena, apanhou os óculos do rosto e o lançou para cima.

O objeto fez algumas piruetas e desmanchou-se na calçada.

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